Olá, somos a Muse me!
Nos propomos a trazer receitas tradicionais e suas histórias, receitas inventadas e as histórias que as inspiraram, contadas com a leveza e a alegria que a riqueza cultural brasileira é capaz de proporcionar, tendo a história negra, e um pouco de moda também, como pano de fundo. As delícias desenvolvidas através deste processo podem ser experimentadas pela leitura e/ou adquiridas sob encomenda.
Nossa história
Yacy e Yara, fundadoras da Muse me, são as mais novas de uma família de quatro irmãos, o interesse delas em culinária vem desde a infância. Curiosas pelo que estava sendo feito na cozinha de casa, ficavam felizes quando lhes delegavam alguma tarefa: mexer a panela do manuê, hidratar a tapioca do bolo, refogar a vinagreira do cuxá … Na adolescência já assumiam a cozinha nas principais datas comemorativas em família, responsabilidade muitas vezes acompanhada de discussões sobre como enriquecer ainda mais as receitas do ponto de vista nutricional. A partir de 2019, quando se mudaram para São Paulo/SP, estes momentos em família ganharam ainda mais relevância. A cada retorno a São Luís/MA, a culinária resgata memórias, traz conforto e territorialidade.
No campo profissional iniciaram por caminhos bem distintos: Yara trabalhou no departamento de tecnologia da informação da UFMA, enquanto Yacy seguiu com nutrição ambulatorial e clínica em hospitais de média/alta complexidade. Em São Paulo suas carreiras convergiram para a moda e, mais recentemente, para a gastronomia. Desfiles, ensaios fotográficos para revistas de moda e beleza, comerciais e campanhas tornaram reais desejos também nascidos na infância, enquanto folheavam as revistas de moda compradas pela mãe, Maria Santana, uma agente prisional que costurava sob encomenda nos dias de folga do trabalho. Para ela, vestir-se bem era uma sobreposição que compunha, junto a outras camadas, uma blindagem frente a discriminação presente em um sistema cuja população carcerária é majoritariamente negra. Desde cedo ensinou aos filhos que moda vai além do vestir.




Em maio de 2024, quando Yara se torna campeã do Jogo de Panelas, competição culinária do programa Mais Você, da Tv Globo, a vontade das irmãs empreenderem juntas nesta área ganha força, especialmente pela boa repercussão do “Doce de espécie de Alcântara” feito por ela durante o reality. Iguaria da culinária maranhense, o doce é pouco conhecido, mas muito celebrado na festa do Divino Espírito Santo da cidade. Antes das gravações, as duas discutiram bastante sobre o cardápio, receitas e testes, numa simbiose criativa.
Nosso propósito: Moda, gastronomia
Desde pequenas, Yacy e Yara são fascinadas pelas Espécies de Alcântara. Encantadas pela combinação de texturas (crocantes e macias), simplicidade (coco e especiarias), elegância (o formato de broche, um cabinho sugerindo norma de etiqueta para comer, o desenho na superfície para decorar) e história do doce, viram na iguaria características artesanais e estéticas comparáveis ao refinamento da Alta Costura, percebendo um cruzamento muito peculiar entre moda, gastronomia e literatura. Esta conjunção tão genuína parecia convocá-las a atrair visibilidade e reconhecimento para a sofisticação e criatividade negra como fonte basilar da história da alimentação brasileira, área onde a importância da participação deste grupo, apesar de incontestável, costuma ser subestimada.
Por vezes a crítica especializada usa termos como “quitutes”, “doceira”, “quituteira” para se referir aos pratos e profissionais qualificados oriundos deste grupo. Ao mesmo tempo, o esteriótipo de “mãe preta”, imagem de controle espelhada numa “docilidade servil”, idealizado principalmente no trabalho doméstico e culinário (tido como uma aptidão nata as mulheres negras e uma atividade manual, de baixa complexidade, mas que exercem com excelência, mesmo em ambientes degradantes e sob relações de poder desfavoráveis), ainda permanece vivo, sendo constantemente atualizado em diversos ambientes de trabalho, muitas vezes em forma de precarização de novas e antigas profissões conforme avançam em direção as mais valorizadas.

Muitas ações foram, e continuam, sendo empregadas no apagamento do negro e sua importância social e econômica ao longo da história do país, sendo o Estado um contribuinte muito ativo deste processo. Em seu projeto de modernização iniciado no século XIX, o branqueamento da população brasileira era imprescindível a construção de uma nova sociedade. O incentivo estatal a imigração europeia foi um dos pilares desta política e a chegada significativa dos primeiros chefs de cuisine às terras brasileiras foi um dos seus desdobramentos, iniciando a predominância masculina e branca na cozinha profissional desde as primeiras décadas do século XX.
Outra situação de ação direta do Estado que entrelaça o apagamento do negro e sua participação na formação das nossas culinárias foi a adoção de uma política higienista de patologização e condenação sanitária do comércio alimentício nas cidades, caracterizado pela presença massiva de negros, em especial mulheres, que tradicionalmente dominavam esta atividade desde África. Neste contexto, a competência de fiscalização dos serviços de alimentação e do espaço público pelo Estado toma forma de perseguição e controle, e é endossada por legisladores, jornalistas e médicos formadores de opinião.
O suor desprendido na rotina profissional – particularmente dos pretos pelo seu “odor nauseabundo” –, o contato manual com as iguarias de mercância e as condenáveis condições de fabricação faziam das comidas de rua focos de micróbios, vírus e outros inimigos invisíveis que tanto debilitavam a saúde da população. Além disso eram gordurosas, fortemente condimentadas, em cujo preparo, muitas vezes utilizavam-se de partes pouco recomendáveis dos animais, como as vísceras e os pés.
Jornal A Tarde. 11.07.1916, Salvador – Bahia. (referência obtida através de “Um pé na cozinha, um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no brasil”, livro de Taís de Sant’anna Machado pela editora Fósforo. p. 160)
Com a brancura se tornando o padrão definidor de mão de obra qualificada, a cozinha, antes um lugar degradante, ascende como ambiente para o exercício da criatividade, arte e ciência gastronômica. Chefs brancos, alçados a revolucionários do ofício alimentar, desbravadores de nobres ingredientes nacionais, promotores da sofisticação e tecnicidade culinária, se tornam contraponto ao estereótipo de passividade, ignorância e arcaísmo que a presença feminina e negra significava. Ainda hoje o reconhecimento da autenticidade da gastronomia brasileira e sua visibilidade no cenário internacional, e nacional, são notados e validados apenas quando chefs brancos estão à frente, um grupo que antes via como exóticas e primitivas as técnicas, conhecimentos e ingredientes comuns à culinária negra e indígena.
Na Muse me valorizamos a cultura alimentar, damos protagonismo a sabedoria popular, priorizando a história negra e sua participação na formação da diversidade e riqueza da culinária brasileira, contribuições que passaram por longo tempo de apagamento e agora vivem o momento de serem reconhecidas. Nós celebramos este momento trazendo crônicas, ensaios e ficção como ingredientes de nossas receitas e produtos.
O conteúdo desta página tem como referência bibliográfica o livro “Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil” / Taís de Sant’Anna Machado. – São Paulo: Fósforo, 2022.

Yacy Sá & Yara Sá
Gastronomia, moda, nutrição & tecnologia