Tinha oito anos quando vi o boi pela primeira vez, era dia de São Marçal. Grupos de bumba-meu-boi estavam reunidos no bairro do João Paulo, manifestando, em louvores e dança, devoção ao santo. Tio Zé Maria segurava minha mão. Eu nunca tinha visto tanta gente junta. Atravessei aquela multidão feito barata em terra de galinha, seguindo para a roda onde um grupo se apresentava. Não sei se era boi da Maioba ou de Maracanã, mas o sotaque de matraca era certo. Naquele dia saímos de casa para ver os maiores bois de São Luís, a Grande Ilha, Upaon Açu. Se soltasse a mão, como iria achar a mãe, tia Rosalina, minhas irmãs e meu irmão depois?
À beirada, a comprida cortina de fitas do chapéu de um brincante alcançava meu rosto e desvelava o espetáculo. Vi caboclos de pena, pareciam gigantes. Pulavam com seus ricos chapéus de plumas coloridas. Até hoje me impressiona vê-los. As índias gingavam, balançando os ombros e movendo os pés num balé ritmado pela cadência dos tambores. Seus cocares eram copas de palmeira babaçu com folhas feitas de penas.
Vaqueiros com chapéus de fita seguravam lanças enfeitadas e protegiam o personagem principal da apresentação: o boi, boneco de corpo oco feito em armação de madeira coberta por um veludo bordado de miçangas, canutilhos e pedrarias, numa arte de pôr em quadro com moldura. A coberta de veludo, também chamada de capoeira do boi, costuma ter desenhos de elementos religiosos, símbolos e personalidades da cultura local no bordado.
O miolo, participante escondido dentro do corpo oco e encoberto por uma longa saia, encenava uma dança dramática que dava vida ao boi, elo com o sagrado, fé, graça e promessa. O amo aboiava, versava, cantava a toada e ao mesmo tempo orquestrava os músicos com o maracá na mão. Alguns batuqueiros afinavam seus tambores e pandeirões no calor das fogueiras, esticando o couro dos instrumentos. Batalhões de músicos e dançarinos de bumba-boi festejavam a ressurreição com pureza e verdade, compartilhando com os brincantes o espantoso milagre da vida, o mistério da morte e o renascimento.
No mormaço do meio-dia, junto ao calor das fogueiras e ao aglomerado de gente, senti vertigem, fui puxada pelos braços. Saí dali de beiço “arvo” – quando um preto muda de cor e fica pálido, é sinal de que passa mal, muito mal! O ronco do tambor onça e da fome se confundiam. Almoçamos num restaurante próximo: carne de sol, vinagrete e arroz branco — com partes soltinhas e outras parche.
O calendário do boi é marcado por ritos. Batismos de bois vão do sábado de aleluia ao dia de São João, padroeiro dos festejos. Os guarnicês, que são apresentações de aquecimento, precedem o ápice: o auto do bumba-meu-boi em noite de São João. Os autos são encenações da lenda de pai Francisco, mãe Catirina e a ressurreição do boi. Alguns grupos fazem um guarnicê especial em noite de Santo Antônio, outro santo junino.
Há grande dificuldade para marcar a despedida. As apresentações começam a findar temporada véspera de São Pedro. Grupos de bumba boi e tambor de crioula brincam na capela do santo e uma procissão marítima, há poucos metros da capela, na baia de São Marcos, homenageia São Pedro. Multidões se reúnem em votos de gratidão e renovação da fé. No dia seguinte, 30 de junho, outro rito de encerramento se ensaia, é a festa de São Marçal, santo não reconhecido oficialmente pela igreja católica. Comemorá-lo é só mais um subterfúgio para adiar o fim, que ainda se arrasta para o festival Lava Boi, na cidade de São José de Ribamar, em julho. Alguns grupos se estendem até outubro ou novembro com a cerimônia da morte do boi: o miolo, lúgubre, dramatiza a captura do animal, garrafões de vinho tinto são derramados, representando seu sangue e o fim do ciclo. Em meio a balaiada de santos e eventos, junho infinito deixa saudades até os próximos arraiais.
Lembro-me da primeira vez que comi pão de fermentação natural. Foi em 2018, numa padaria de orgânicos do Jardim Paulista. O pão tinha uma casca rústica, crocante, de cor morena e um miolo macio, de largos alvéolos, com suave acidez no sabor. Ao tocar a língua, o pão virava um nato estimulante de papilas com transtorno de saciedade ansiosa, ágeis em acelerar o processo de digestão, como se quisessem digerir o pão instantaneamente dentro da boca, deixando leve a continuidade do processo no estômago.
Para mim, o prazer em comê-lo concentra-se em umedecer o miolo na língua, massagear sua textura contra o céu da boca e sentir as notas dos ingredientes. Alguns deles podem nunca ter feito parte da fórmula, mas, por obra do lento trabalho das leveduras e bactérias, espantosamente se fixam ali. Já cheguei a sentir gosto de mel e castanhas num pão feito só com trigo, água e sal. Estas experiências já figuravam no meu imaginário, meses antes, ainda em São Luís, havia comprado pela internet o clássico Pão Nosso, do Luiz Américo, mas não conseguia por a teoria em prática. Transformar trigo, água e sal em pão, sem apelo ao fermento industrial, ganhava contornos de milagre de Jesus, o pão que veio do céu para ser sacrificado. Na infância, o chá de folhas de erva-cidreira colhidas no quintal para o almoço e a oração à mesa quando meu pai estava desempregado também se transformava, e nos nutria. Eu vencia a asma e aprendia na escola.
A massa madre era um grande mistério: misture trigo e suco de abacaxi, guarde num potinho ao abrigo da luz; dois dias depois, jogue fora metade dessa cultura, junte trigo e sucos novos ao que sobrou. O processo se repete e, ao longo de sete dias, você cria seu fermento selvagem, que precisa ser alimentado e cuidado pelo menos uma vez por semana, um Tamagotchi real. Dali sai seu levain, o fermento refrescado pronto para uso. Pega ele, mistura a uma quantidade maior de trigo e água, sova, acrescenta sal, faz dobras, põe pra descansar, modela, assa … Desta saga amorosa, nasce o pão. Pelo menos era pra ser assim, para mim, foi uma frustração. Talvez me faltasse a devoção do pajé curandeiro e a energia dos mascarados cazumbás. Juntos, ressuscitaram o boi, morto por pai Francisco em satisfação ao desejo de grávida de mãe Catirina, que queria comer a língua do boi mais bonito da fazenda. A crença, um sincretismo afro indígena católico, livrou o escravizado Chico de ser castigado e o casal de ter um filho de saúde frágil ou sofrido de mau agouro.
Nas minhas tentativas solitárias, fiz pão solado, a massa pesava, nem formava alvéolos. Sem a experiência necessária ao controle das variáveis de temperatura e cheiro, acabei matando a massa madre. A proximidade de São Luís com a linha do equador faz a temperatura da cidade ficar quase sempre acima de 30 °C, a umidade do ar ainda acrescenta, em média, 4 °C a sensação térmica. Nestas condições a atenção dada ao fermento selvagem precisa ser redobrada.
Tantos inventam histórias sobre levains milenares, criei uma para ser indulgente com meu desleixo: se nem os herdeiros do fermento original, trazido nos porões do navio francês dos fundadores de São Luís, em 1612, conseguiram cuidar da relíquia nas condições climáticas da ilha, como eu, neófita da seita do pão artesanal, poderia? A fórmula do mais autêntico pão francês foi perdida e São Luís virou a ilha do reggae, Jamaica brasileira.
Por quase cinco anos morando em São Paulo, achei melhor me deliciar dos pães fruto do sacro ofício dos sacerdotes do pão. A cidade concentra uma irmandade de excelentes padarias artesanais, com padeiros e padeiras gentis nas conversas, trocas de ideias e de levains. Senti-me encorajada a tentar fazer o pão novamente. Talvez, como o conterrâneo Gonçalves Dias na “Canção do Exílio”, se trouxesse para perto de mim a cultura da “Terra das Palmeiras” traduzida no fazer do pão, a macumba da fermentação natural pudesse funcionar desta vez.
A inspiração no arroz de cuxá, prato típico da culinária maranhense, seria a ponte entre o fermento e o boi para blindar o pão de qualquer mau agouro. O cuxá é uma espécie de molho pesto de vinagreira. O hibisco, botão da flor da vinagreira, é mais conhecido que a planta de onde brota. A folha da vinagreira tem sabor azedo, assim como seu conhecido botão, e seu formato lembra o da folha de cannabis. Depois de cozida e picada na ponta da faca, vira uma papa, que é refogada no alho e gergelim dourados com azeite junto com camarão seco. Acrescentando-se pimenta de cheiro, temperos a gosto e arroz cozido, chegamos ao arroz de cuxá.
Dei início a mandinga do pão misturando a farinha ao vinho tinto seco diluído em chá de hibisco durante a fase de autólise. Acrescentei levain, depois sal, sovei, fiz as dobras, a pré-modelagem e a modelagem. Borrifei uma nuvem de água sobre a superfície da massa e rolei ela em uma travessa cheia de sementes de gergelim preto, gergelim branco, sementes de abóbora, girassol, quinoa vermelha e quinoa branca, vestindo o pão com uma bela capoeira. Levei o pão boi a geladeira dentro de um cestinho vedado para fermentar por dezoito horas.
Durante o assamento, ao destampar a panela de ferro e devolvê-la ao forno sem tampa para assar mais alguns minutos, um aroma adocicado de vinho recendeu pelo minúsculo estúdio onde moro. Não há divisórias separando quarto e cozinha, deitei sobre a cama, respirei fundo, prendi o ar. Quis prolongar a permanência daquele cheiro extasiante dentro dos pulmões. Os microrganismos selvagens aproveitaram o banquete. Desfrutaram lentamente de todo o vinho e chá da massa, imprimindo discreto rosé no miolo, um perfume doce e alvéolos aerados. O bordado de sementes deu um tom acastanhado ao sabor. Assim como fez Catirina ao seu filho, ofereci o melhor a ser ofertado, servi ao pão, e ele, de forma generosa, me serviu de volta.



A crônica Pão de Macumba foi meu primeiro texto de interseção literatura/gastronomia, aqui passeio pelo enredo de uma das mais ricas manifestações da cultura maranhense: o bumba-meu-boi. No fazer do pão de fermentação natural resgato minhas mais remotas memórias do folguedo.
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