Lembro-me da soma de 1 + 1 ser 10 no sistema binário.
Lembro-me de A, B, C, D, E e F serem números hexadecimais.
Lembro-me dos gráficos das equações polares resultarem em cardeodes e rosaceas, atordoantes expressões da Grande Beleza.
import com.yarasa.math.Equation;
import com.yarasa.math.PolarEquation;
public class Cardiod extends PolarEquation{
public Cardiod() {
super(Equation.CARDIOID, "r = 1 - 3 x sin(θ)");
}
@Override
public double calculate(double theta) {
return (1 - 3*Math.sin(theta));
}
}


Lembro-me de VERDADEIRO e FALSO = FALSO, enquanto VERDADEIRO ou FALSO = VERDADEIRO.
Lembro-me do meu aniversário e o dia do programador coincidirem quando é ano bissexto.
Lembro-me do tempo voar ao correr na esteira em velocidade alta, como se a teoria da relatividade fizesse o tempo tender a zero, a distância ao infinito e a esteira virasse um buraco negro.
Lembro-me de desenhar buracos concêntricos no quintal. O círculo central era feito pela pressão do calcanhar na terra e a circunferência da borda com a pressão do dedão. O pé servia de compasso na simpatia para afastar a chuva, atrair o sol e as roupas secarem no varal.
Lembro-me de abrir os braços de frente para o nascente às seis da manhã e orar versos de benzimento de arca, ritual de harmonização ancestral da mãe pra curar meu osso esterno fundo e a postura da coluna.
Lembro-me de “muito obrigada” depender do gênero da pessoa que está falando.
Lembro-me da prima repetindo “LiNaK Roubou Césio Francês” pra decorar a tabela periódica.
Lembro-me da professora pedindo exemplos de palavras com dígrafos, no nervosismo soltei: cachorrinho.
Lembro-me de duas vacas andando no riacho debaixo da ponte de madeira, minhas pernas tremendo a cada pé avançando sobre estacas quebradas, e a escola do outro lado.
Lembro-me de entender “Jaciara é uma loucura” ao ouvir “Saciar esta loucura” em “Borbulhas de Amor” de Ferreira Gullar cantada por Fagner. Meu nome real é Jaciara.
Lembro-me do refrão de Rithym of the night, da Corona, ser parodiado como “Cuscuz de milho é bom demais” no nordeste e “Jesus humilha o Satanás” no sudeste.
Lembro-me do nordeste deixar de ser localização geográfica e virar uma ideologia nas eleições de 2022.
Lembro-me de sorvete de acaí com xarope ou banana ser considerado açaí em São Paulo.
Lembro-me do sorvete de espuma da feira ser quente.
Lembro-me do nascimento de uma geração de dezenas de gêmeos em “Cem Anos de Solidão” e de todos esses gêmeos morrerem no mesmo dia e do mesmo modo.
Lembro-me de Brás Cubas ser defunto autor de sua própria biografia, com muitas memórias ficcionais gloriosas.
Lembro-me dos mascarados fofões no carnaval.
Lembro-me de ficar escondida debaixo da mesa no domingo a tarde para não pentear os cabelos.
Lembro-me das tranças feitas no domingo durarem até o domingo seguinte.
Lembro-me de:
Hoje é domingo, Pé de cachimbo
O cachimbo é de ouro, bate no touro
O touro é valente, bate na gente
A gente é fraco, cai no buraco
O buraco é fundo
É o fim do mundo!
Lembro-me do vendedor do mercadão justificar o preço das tâmaras importadas devido serem fruto de tamareiras testemunhas da travessia de Jesus pelo deserto.
Lembro-me de comprar um bombom com uma cédula de mil cruzeiros, cujo reverso era estampado por um casal indígena ladeado por peixes, milho e uma habitação. O verso era estampado pelo Marechal Rondon.
Lembro-me de juntar garrafas de vidro para trocar por algodão doce.
Lembro-me do almoço ser chá da erva cidreira do quintal com dois biscoitos cream cracker.
Lembro-me de comprar galeto por cinco reais no início do plano real.
Lembro-me da variedade de iogurtes nas prateleiras dos supermercados e nas propagandas de TV, até se multiplicarem nas geladeiras dos mais humildes lares.
Lembro-me do ônibus cruzando a ponte do São Francisco.
Lembro-me de farinha d’água ser mais crocante que farinha seca.
Lembro-me de peixe frito com farinha d’água ser a comida mais saborosa do mundo.
Lembro-me do vendedor do cuscuz passar na bicicleta de manhã cedo gritando: Ideal!
Lembro-me de Jurassic Park. Meu pai se chama Juracy.
Lembro-me da primeira princesa negra da Disney beijar um sapo e virar sapo também.
Lembro-me de “O Império dos Sentidos” no Cine Praia Grande e “Azul é a Cor mais Quente” no Cine Lume.
Lembro-me da carne de sol do frigorífico do bairro ficar pendurada em ganchos na beira do telhado pegando sol.
Lembro-me de ter sonhado várias vezes caindo de um prédio e acordar assustada.
Lembro-me de sonhar que estava indo ao banheiro e acordar com a cama ensopada.
Lembro-me de gerentes de supermercado vigiando meus passos ao me ver transitar entre as prateleiras.
Lembro-me de São Luís ser a única capital brasileira fundada por franceses, invadida por holandeses e colonizada por portugueses.
Lembro-me de alguns colonizados exaltarem com orgulho a cultura do colonizador.
Lembro-me de Upaon-Açu ser o nome dado pelos povos indígenas a capital maranhense.
Lembro-me de Gonçalves Dias, Sotero dos Reis, Aluízio de Azevedo, Graça Aranha, da constelação das Plêiades, da Atenas Brasileira e seu Panteon de poetas e escritores.
Lembro-me de Jamaica Brasileira ser perífrase de São Luís e da ausência de uma figura de pensamento capaz de colocar um país dentro de outro e compará-lo com uma cidade.
Lembro-me de dançarem reggae agarradinho em Upaon-Açu.
Lembro-me de São Luís ser tão próxima da linha do equador que os raios solares incidem na ilha num ângulo de 90°, causando um calor infernal o ano inteiro.
Lembro-me do Tio Sam de olho no Centro de Lançamento de Alcântara devido a vantajosa relação de proximidade da península com linha imaginária que divide o planeta ao meio e a economia de propelente de foguete.
Lembro-me de nunca ter comido língua de boi, apesar de Catirina.
Lembro-me de São Marçal não ser Santo.
Este texto responde a um desafio da OuLiPo, acrônimo para “Ouvroir de Littérature Potentielle” (“Oficina de Literatura Potencial”), grupo de escritores e matemáticos fundado na França em 1960. No exercício acima listo 50 lembranças “infraordinárias”, tão comuns que ficam abaixo do ordinário, como partes muito corriqueiras da memória coletiva.
O título faz referência a uma destas coisas infraordinárias: na infância quem nunca entendeu errado a letra de uma música e a cantou assim, por muito tempo, jurando estar certo? “Quem dera ser um peixe” é um verso de “Borbulhas de amor”, composição do conterrâneo Ferreira Gullar, música que performa um destes equívocos dos meus ouvidos infantis.
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